Editorial

EDITORIAL:

“AUTORITARISMOS E USOS INSTRUMENTAIS DO ESTADO”

A

presente edição da Revista Poder & Cultura é fruto de um imenso trabalho por parte dos(as) autores(as) que enviaram os seus artigos para serem avaliados e que estão sendo publicados agora, bem como de toda a sua Comissão Editorial. Em um país onde a educação e a pesquisa vêm sendo cada vez menos levadas a sério, onde os investimentos destinados a ambas, no lugar de aumentarem, são cortados, e em um contexto no qual, além de lutarmos contra um vírus, temos de enfrentar também governantes que não se importam com a população, escrever certamente é um ato de resistência. Gostaríamos, portanto, de iniciar este editorial agradecendo às pesquisadoras e pesquisadores que continuam tocando os seus trabalhos que são cruciais para o andamento e o desenvolvimento da nossa sociedade, sem os quais a ciência não seria tão grandiosa como é.

É importante que, cada vez mais, os(as) acadêmicos(as) busquem dentro de suas respectivas áreas construir o que o ensaísta alemão Walter Benjamin (1892-1940) convencionou chamar de história a contrapelo e este é o momento propício para estudarmos sobre aqueles que não foram tão estudados: os excluídos, os subalternizados[1]. As histórias daqueles que estão no topo da cadeia alimentar, não que não seja importante estudá-las, já são bem mais conhecidas e analisadas do que as histórias daqueles que foram desumanizados, dominados e silenciados por muito tempo.

Os temas dos 10 textos que trazemos no dossiê deste semestre, intitulado Autoritarismos e Usos Instrumentais do Estado, procuram nos mostrar como a extrema-direita, que teve períodos de ascensão no século XX em várias partes do mundo e que já havia se apoiado nos autoritarismos e implementado ditaduras, atualmente, em um cenário diferente, novamente ascende e angaria milhões de seguidores não só no Brasil, mas em diversos outros países. Estes 10 artigos englobam temáticas que tratam de autoritarismos, fascismo, nazismo, bolsonarismo, negacionismo e o uso das mídias pelos atores e atrizes destes contextos. Mais do que falar acerca dos que estiveram e estão em uma posição de dominação, muitos dos textos carregam os posicionamentos daqueles que estiveram e estão em posições subalternizadas, que são segregados e, em muitas ocasiões, mortos por não se enquadrarem no padrão branco e heteronormativo burguês. Quem ler este dossiê irá sim expandir o seu conhecimento sobre Adolf Hitler e Jair Bolsonaro, a título de exemplo, mas irá conhecer também as histórias de indivíduos que resistiram e que ainda resistem às políticas genocidas e segregatórias em seus cotidianos.

 

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “tal como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma recordação, como ela relampeja no momento de um perigo. Para o materialismo histórico, trata-se de fixar uma imagem do passado da maneira como ela se apresenta inesperadamente ao sujeito histórico, no momento do perigo. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Ele é um e o mesmo para ambos: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso tentar arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como redentor; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que tampouco os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vence[2].

 

Sem mais delongas, convido a você, leitor(a) desta edição da Revista Poder & Cultura, a conhecer os seguintes artigos que compõem o nosso dossiê e que foram desenvolvidos ao longo da pandemia da Covid-19.

O texto de abertura, Doses de civilização com barbárie: Estado autoritário, repressão social e política higienista no Rio de Janeiro nas vésperas da revolta da vacina, de Fernando Wolf, faz uma análise da Revolta da Vacina (1904) e das posturas autoritárias adotadas pelo governo do período para, mais do que frear a propagação da varíola, adequar a cidade do Rio de Janeiro a padrões de beleza e higiene europeus, atacando a população pobre tida como não civilizada.

O segundo artigo, A homossexualidade na Alemanha nazista: As vítimas do Triângulo Rosa, de João Antonio Gonçalves, mostra a partir do capítulo de livro Os marginais e a consolidação a ditadura de Hitler (2010), de Robert Gellately, e de Marcados pelo Triângulo da rosa (2017), de Ken Setterington, a higienização da Alemanha proposta por Hitler, que perseguia e matava sistematicamente grupos sociais considerados como uma ameaça, incluindo homossexuais que, de acordo com os nazistas, destoavam da moral daquela sociedade.

Raquel Cunha da Costa e Mauricio Rodrigues de Souza, em O antissemitismo fatal: Uma análise do livro nazista O Cogumelo Venenoso à luz da teoria crítica, após iniciarem com um apanhado da história do povo judeu e de como a virada do século XX trouxe consigo ideias antissemitas, analisam o livro O Cogumelo Venenoso (1938), de Ernst Hiemer, destinado ao público infantil, que ensinava a identificar judeus com imagens e situações estereotipadas e preconceituosas.

Júlia Pisani Leme Ferreira, em A memória do pacto: Considerações sobre gozo e violência na ditadura militar chilena (1973-1990), apresenta o documentário O Pacto de Adriana (2017), de Lissette Orozco, mostrando o gozo do torturador que surge da racionalidade autoritária e a importância da memória coletiva para impedir o esquecimento da censura e desumanização impostas às pessoas durante os regimes ditatoriais, capaz de evitar que tragédias como a ditadura chilena se repitam.

O quinto texto, Ocidente pós-11 de setembro: O projeto autoritário da Al Qaeda e a representação midiática do terrorismo, de Lilian Sanches, trata da origem da Al Qaeda, do 11 de setembro, do pânico instaurado após esta data e das inverdades disseminadas acerca do Islã e seus seguidores, fornecendo uma análise da abordagem das mídias sobre este tópico, especificamente da Folha de S.Paulo e do New York Times, e de como ela colaborou com a propagação de estereótipos.

O sexto artigo, Ensaio sobre o bolsonarismo: Autoritarismos, fascismos, personalidade autoritária, psicologia das massas e patologias do social, de Lucas Labanca Soares, aponta e esclarece as divergências entre autoritarismo e fascismo, debatendo da mesma forma a personalidade autoritária, a psicologia das massas e as patologias do social, e mostra a expansão do bolsonarismo no Brasil, que foi impulsionado pelas mídias digitais, inclusive através do uso das fake news, em um cenário de avanço da extrema-direita no mundo.

Túlio Bueno da Rocha Martins, em A massa do mito: Ensaio sobre a estratégia de campanha digital utilizada por Bolsonaro nas eleições de 2018 a partir de uma visão psicanalítica, acaba analisando a ascensão de Bolsonaro, e demonstra que ela foi impulsionada pelo compartilhamento das suas ideias nas redes sociais e da adesão dos brasileiros a essas, porém argumenta que ele foi eleito também por outras estratégias como, por exemplo, a união com várias bancadas políticas.

Jéssica Lopes Camargo, em #OBrasilNãoPodeParar: O negacionismo como instrumento de poder político, expõe a política de genocídio que foi implementada pelo governo Bolsonaro ao longo da pandemia da Covid-19, mostrando o uso da propaganda O Brasil Não Pode Parar e como os bolsonaristas replicam um discurso negacionista que relativiza o vírus e vai contra as indicações da Organização Mundial da Saúde (OMS), afetando, principalmente, a população mais pobre.

O penúltimo texto, No panteão bolsonarista – Uma análise da narrativa da campanha “Um Povo Heroico”, do Governo Federal, para celebrar a Independência Nacional em 2020, de Angela Pimenta, traz uma análise da campanha Um Povo Heroico, de 3 de setembro de 2020, da concepção de nação para o governo Bolsonaro e da intolerância dele para com as críticas que recebe, neste caso a sátira da propaganda que foi feita pelo humorista Marcelo Adnet.

O último artigo, Programas policiais, medo do crime e apoio a posições autoritárias no Brasil contemporâneo, de Ana Carolina de Morais Colombaroli, mostra os programas policiais em canais da televisão brasileira, especialmente o Cidade Alerta e o Brasil Urgente, buscando entender se os crimes que são passados, de alguma maneira, acabam influenciando os telespectadores a sentirem medo do que estão assistindo e se esse sentimento faz com que se tornem mais suscetíveis às proposições autoritárias.

Para a segunda parte desta edição da Revista Poder & Cultura, trazemos 10 produções livres e uma resenha que vão falar de temas variados, que passam por questões religiosas, cinema e, mais uma vez, autoritarismos e grupos subalternizados, escritas durante o período pandêmico.

O primeiro texto desta sessão livre, O argumento cosmológico kalam: Discussões contemporâneas da existência de deus à luz da filosofia analítica e das teorias do tempo, de Felipe Soares Forti, faz uma análise e a defesa do argumento cosmológico kalam, carregada das percepções mais antigas dos filósofos Al-Kindi e Al-Ghazali e das mais atuais acerca do assunto, sendo a de William Lane Craig a principal.

O segundo artigo, O cinema como fonte histórica e representação do real: Uma análise do filme laranja mecânica, de Ailton da Costa Silva Júnior, apresenta o filme Laranja Mecânica (1971), baseado no livro de mesmo nome, publicado em 1962 por Anthony Burgess,  e mostra o cinema como uma possível ferramenta histórica capaz de representar cada época de acordo os responsáveis pelo desenvolvimento das películas.

Vitória Paschoal Baldin, em O grafite enquanto comunicação social inserida nas lógicas de visibilidade urbana, aborda a disputa pela ocupação e exposição de trabalhos nos espaços públicos, discutindo como o grafite se insere nesse cenário, modificando a forma como os indivíduos se relacionam com estes espaços por onde transitam e estabelecendo enfim uma comunicação com estas pessoas, fazendo jogos com o visível e o invisível para tratar de política, a título de exemplo.

Julio Cesar Costa Manoel, em O gradualismo legal como elemento central para a perpetuação da subalternidade do negro no Império do Brasil, fala do gradualismo que foi garantido por leis, como a Lei do Ventre Livre (1871) e a Lei dos Sexagenários (1885), que colaboraram com os escravocratas que continuaram desumanizando e subalternizando os negros no Império, em uma transição que não favoreceu este grupo, mas as elites que adiaram a liberdade e perpetuaram o cativeiro.

O quinto texto, Retratos de época: Memória, aspectos da produção marginal de 1970 e a formação de uma identidade marginal contemporânea, de Leilane Oliveira Palma Lopes, traz o movimento Literatura Marginal no Brasil, da década de 1970, quando artistas marginais, que eram excluídos da sociedade, faziam as suas artes no contexto da ditadura militar brasileira sob os olhos da censura, pois essas eram tidas como uma grande ameaça para o país.

O sexto artigo, O coito anal derruba o capital: subversão e anarquismo na primeira onda do movimento LGBTTTI+ brasileiro, de Arilson Ferreira Rodrigues e Paula da Luz Galrão, expõe as primeiras movimentações da comunidade LGBTTTI+ surgidas no período do regime ditatorial brasileiro, mostrando como a organização do movimento foi prejudicada e reprimida pelo governo e pela polícia.

Noelia Rodrigues Pereira Rego, em Subalternizadxs-mambembes-insurgentes na construção de práticas-investigativas-transformadoras como instrumentos de trans-form-AÇÃO nas ações pedagógicas em educação popular e nas práticas de pesquisa outras, aborda os resquícios de colonialismo ainda existentes na educação e o subalternizado de Antonio Gramsci, retomado por Gayatri Chakravorty Spivak, formulando durante o texto os conceitos subalternizadxs-mambembes-insurgentes, práticas-investigativas-transformadoras e educação outra.

Daniela de Andrade Souza e Grasielle Borges Vieira de Carvalho, em Prisões brasileiras e o silenciamento das sexualidades de mulheres: Uma análise a partir das vozes encarceradas, tratam das mulheres que estão encarceradas e do controle que é exercido diariamente sobre os seus corpos e as suas sexualidades, valendo-se dos próprios relatos que elas têm para oferecer, utilizando o documento LGBT nas prisões do Brasil: Diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências do encarceramento (2020) para tal.

O texto, “Desistir, essa palavra não existe no meu vocabulário”: Violência e agência na trajetória de Luakam Anambé”, analisa a história de uma mulher indígena, Luakam Anambé, através das violências sofridas por ela ao longo da vida e das suas consequências, bem como das batalhas que foram enfrentadas por Luakam Anambé para que fosse possível conquistar os seus objetivos, com base, principalmente, em uma entrevista concedida à autora do artigo.

No penúltimo texto, O câncer na mira da cobertura universal de saúde: Intenção ou ação? A experiência brasileira, Eduardo Blanco Cardoso e Fernando Gil Villa apresentam a Cobertura Universal de Saúde (CUS), falando do seu avanço mundial que tem sido dificultado pela corrupção, e a situação do câncer no mundo, trazendo essas informações para o cenário brasileiro.

No último artigo livre, Autoritarismo e religião; forma e conteúdo. Ensaio sobre as semelhanças estruturais a partir da perspectiva da Teoria Crítica da sociedade, Victor de Sales Alexandre mostra o que pode ser observado de semelhante entre o autoritarismo e as instituições religiosas, afirmando que figuras autoritárias modificam algumas questões religiosas a seu favor e o mesmo ocorre nestas instituições, onde posturas autoritárias aparecem.

A resenha do livro Idade Mídia Evangélica no Brasil. Uma Análise da Força Midiática da Igreja Internacional da Graça de Deus, de Gerson Leite de Moraes, feita por Wagner Pinheiro Pereira, intitulada Religião, mídia e política: R. R. Soares e o poder midiático da Igreja Internacional da Graça de Deus, mostra o alcance de Romildo Ribeiro Soares, mais conhecido como R. R. Soares, e da Igreja Internacional da Graça de Deus a partir das mídias e estratégias que foram usadas e que diferenciaram a empreitada deste missionário da que é utilizada pelo Bispo Edir Macedo.

Desejamos uma excelente leitura e que as temáticas desta edição, que foram brilhantemente desenvolvidas para este semestre, incitem reflexões e questionamentos nos leitores(as). Até a próxima.

Nelson da Silva junior[3]

Wagner Pinheiro Pereira[4]

Isabela Nogueira da Silva Grossi[5]



[1] BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Idem. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de: Sérgio Paulo Rouanet. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012 (Obras Escolhidas, v. 1), p. 245.

[2] BENJAMIN, Walter. Op. cit., 2012, p. 244-245.

[3] Nelson da Silva Junior é psicanalista, Doutor em Psicopatologia Fundamental pela Universidade Paris VII, Professor Titular do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Coordenador do Latesfip, juntamente com Christian Dunker e Vladimir Safatle. Autor, entre outros, dos livros Le fictionnel en psychanalyse – Une étude à partir de l’œuvre de Fernando Pessoa (Presses Universitaires du Septemprion, 2000), Linguagens e pensamento – A lógica na razão e desrazão (Casa do Psicólogo, 2007), A psicologia social e a questão do hífen (org. de Silva Junior e Zangari; Blucher, 2017), Patologias do social (org. de Dunker, Silva Junior e Safatle; Autêntica, 2018) e Fernando Pesssoa e Freud: diálogos inquietantes (Blucher, 2019). E-mail: nelsonsj1961@gmail.com.

[4] Professor de História da América Contemporânea e História da Arte e da Cultura no Instituto de História (IH) e no Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID), ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduando do curso de Bacharelado em Teologia, do Centro de Educação, Filosofia e Teologia da Universidade PresbiterianaMackenzie, onde desenvolve a pesquisa “‘O Show de Deus’: Teodrama e Cosmovisão Cristã da História da Salvação da Humanidade nas Sagradas Escrituras e na Minissérie Televisiva ‘A Bíblia’ (2013)”.

[5]Graduada em História pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP), integrante do Grupo de Estudos em Educação, Cultura e Contemporaneidade (GRECCA/UCP) e Secretária-Geral da Revista Poder & Cultura. E-mail: beladelorien@gmail.com.